“A única luta que se perde é a que se abandona”

Hebe Bonafini, Madres de la Plaza de Mayo

06 outubro 2010

QUANDO A INJUSTIÇA BATE À PORTA

"(...) queria dizer que uma das coisas que mais me aborrece como Secretário de Cultura é ver gente, até com a melhor intenção, dizer assim: ‘tem um casarão velho lá não sei onde, vamos fazer um museu’. Por que um casarão velho tem que virar museu ou centro cultural? Quem disse que casarão velho é um bom lugar pra ter museu ou centro cultural? É uma solução pra um problema que ninguém consegue resolver. Uso de prédios históricos é uma das ciências mais ocultas que eu conheço. É preciso descobrir a vocação daquele espaço porque ele fala. É só lhe dar ouvidos que ele diz o que ele é, ele diz o que ele pode ser. Não pode ser inevitavelmente centro cultural ou museu. Mete lá umas velharias, põe o nome da mãe do prefeito e temos um museu na cidade.
Não é isso que a gente deseja."




É concordando com estas palavras do Sr. Carlos Augusto Calil, na ocasião da abertura do “II Encontro Paulista de Museus”, no Auditório Simon Bolívar em São Paulo, em Junho de 2010, que nós, moradores da Vila Itororó, queremos reafirmar nosso desejo de permanecer morando neste lugar que escolhemos para construir nossas histórias de vida.

Alguns de nós residimos na Vila Itororó há cerca de 30 anos, outros há mais de 50, outros há 10 anos. Desde a década de 1920 esta Vila sempre foi moradia de aluguel, e todos nós tínhamos contratos de locação regulares. Ocorre que há cerca de 20 anos, a Vila está abandonada pelo proprietário, restando a nós, moradores, mantermos a área da forma que podemos. Isso significa que temos direitos adquiridos. Em 2006 fomos surpreendidos com uma ação judicial de desapropriação, decorrente de um decreto de utilidade pública para esta área, que fica no bairro da Bela Vista (SP) e que é tombado pelos órgãos de patrimônio histórico estadual e municipal – Condephaat e Compresp.

A Secretaria Municipal de Cultura quer transformar nossas residências em um centro cultural e gastronômico! A contradição não está relacionada apenas ao depoimento do Sr. Secretário, mas também na insistência em inserir este tipo de função em um bairro que já tem muitos equipamentos culturais e restaurantes.

A injustiça maior é que estamos na iminência de um despejo e sendo obrigados a entregar nossas casas, sem termos qualquer garantia de moradia, sem termos sido oficialmente convocados a uma audiência pública, como preveem o Estatuto da Cidade e o Plano Diretor, ou seja, sem que o poder público tenha aberto qualquer tipo de diálogo com a comunidade.

Em Agosto de 2009, a CDHU informou por meio de nota da Assessoria de Imprensa, que estaria viabilizando três conjuntos habitacionais na Rua Conde de Joaquim para os moradores da Vila Itororó. No entanto, um destes imóveis já havia sido prometido a outro grupo de pessoas que hoje moram em cortiços no mesmo endereço – o que evidencia a total ausência de um planejamento integrado para um mesmo bairro. E mais: uma tentativa nítida de desarticular os movimentos sociais do centro que, há anos, estão na luta por uma política habitacional condizente com a realidade urbana em que vivemos.

A Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó (AMAVila), muito bem amparada pelo Serviço de Assessoria Jurídica da USP (SAJU), vem tentando um diálogo com a SEHAB, SMC, Procuradoria do Patrimônio Imobiliário do Estado de São Paulo e CDHU, porém ainda sem sucesso. Porque não encontrarmos espaço para diálogos diretos e claros com as Secretarias diretamente envolvidas e, logicamente, as responsáveis pelo assunto? Se o problema que enfrentamos é habitacional, porque a Secretaria de Cultura está coordenando este processo? Qual a legitimidade deste Decreto de Utilidade Pública para Desapropriação? Porque um centro cultural em uma cidade e em um bairro que carece de habitação social? Porque as Secretarias vêm se recusando a dialogar legalmente com a parte mais interessada em todo o processo, os moradores da Vila Itororó?

Enquanto cidadãos e moradores, exigimos minimamente que nossos direitos sejam respeitados:
- garantia do direito à moradia;
- participação popular por meio de todos os instrumentos legais já previstos;
- preservação da memória do bairro da Bela Vista;

Não estamos encontrando respostas a nenhuma de nossas perguntas, mas principalmente, para esta: qual motivo para termos que entregar nossas moradias de tantos anos, em troca de um financiamento, ou seja, uma dívida por mais de 25 anos? Como disse o Sr. Secretário em seu depoimento: “não é isso que a gente deseja”!


Assina esta carta a Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó, AMAVila, em nome de todos seus moradores. - SP, Outubro, 2010

14 comentários:

  1. Luciana Scanapieco12 outubro, 2010

    poxa, fui até a vila, por ter visto na internet que era um local "turistico", ou melhor, um dos pontos que mostravam a caracteristica e a história da região, mas, ao chegar lá, que triteza!!"!!! ver aquele predio que deve ter sido lindissimo um dia, todo abandonado! nem acreditei que ainda moravam pessoas ali!. é uma vergonha esse país mesmo, que acho q só pode restaurar casas antigas se for para algum orgao cultural, ou restaurante!

    Fica aqui meu apoio a vocês, como historiadora e futura museologa.

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  2. Olá, gostaria de entrar em contato com algum representante da associação, é possível? Meu e-mail é nataliazonta@grupofolha.com.br.

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  3. Natália!

    Tentamos um contato mas seu email retornou com erro. Nós da AMAVila gostaríamos de publicar esta Cartana FSP, como você poderia nos ajudar?

    Agradecemos desde já e aguardamos um próximo contato!

    amavilaitororo@yahoo.com.br

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  4. achei incrível esse texto! Ouvir os espaços, ouvir as pessoas...A vila itororó já é habitada, já existe enquanto lugar. é o poder de alguns se sobrepondo a existência de muitas e muitas pessoas e histórias. Que conceito de Cultura é esse???? Amaranta (http://criancadadobixiga.blogspot.com/)

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  5. No texto não ficou claro para mim que o texto (que gostei tanto) do Sr Calil é apenas um discurso...e que ele próprio quer transformar a Vila Itororó em Centro Cultural. Retirei o post do blog para não passar informação equivocada....valeu! amaranta

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  6. Amaranta, era esta a idéia do texto mesmo - mostrar a quem o lê o quanto o Calil está sendo contraditório e incoerente, para não dizer 'cínico', ao defender a transformação da Vila em um centro cultural nos moldes que propôs.

    Acho que esta idéia fica clara aqui:
    "A contradição não está relacionada apenas ao depoimento do Sr. Secretário, mas também na insistência em inserir este tipo de função em um bairro que já tem muitos equipamentos culturais e restaurantes."

    Daí nos colocamos neste ponto crítico, pois desde 2006 é exatamente isso que queríamos ouvir do Sr Calil!

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  7. Olá,

    Estou fazendo uma pesquisa acadêmica sobre habitação e gostaria de conversar com vocês da Vila, bem como visitá-la. É possível?
    Aguardo contato.

    (claudia-tagal@uol.com.br)

    Grata

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  8. Olá,

    Preciso entrar em contato com alguém da associação, para conversar e visitar a vila, por conta também de um trabalho acadêmico.

    obrigada,
    Flávia.

    flatrds@yahoo.com.br

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  9. Boa tarde,

    Sou estudante de arquitetura e gostaria de entrar em contato com alguém da vila para a realização de um tabalho acadêmico. Tentei enviar um email para a associação e não obtive resposta!

    Obrigada,
    Luísa

    luisavicentini@gmail.com

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  10. "...Ocorre que há cerca de 20 anos, a Vila está abandonada pelo proprietário, restando a nós, moradores, mantermos a área da forma que podemos. Isso significa que temos direitos adquiridos." O que significa diretos adquiridos? Quem sabe a resposta para a pergunta:"qual motivo para termos que entregar nossas moradias de tantos anos, em troca de um financiamento, ou seja, uma dívida por mais de 25 anos?" seja: Para que a Vila Itororó deixe de ser o manto da degradação que encobre o submundo do tráfico de drogas. Para que a Vila Itororó não mantenha mais uma lâmina d'água podre na antiga piscina, constituindo-se em foco de doenças e criadouro de mosquitos, inclusive o transmissor da dengue? Para que a Vila Itororó não mantenha mais uma montanha de lixo na calçada sem o cuidado de acondicionar em sacos plásticos? Para que os moradores da vizinhança não tenham mais os seus carros depredados, tanto na rua quanto nas suas garagens? Para que a vizinhança possa, depois de escurecer, pode ir à padaria da esquina em segurança? Estes direitos adquiridos eu questiono. Sou a favor daqueles direitos que vêm através dos impostos pagos, das reparações estruturais que impedem o aspecto de abandono. A favor da união dos moradores "de bem" que impedem a instalação de "bocas de fumo", que denunciam e não acobertam os traficantes de drogas. De moradores "de bem" que não roubam nos supermercados vizinhos e não assaltam transeuntes. Dez, trinta ou cinquenta anos foram mais do que suficientes para que a Vila Itororó, embora habitada por pessoas que não pagam mais aluguel, nem em juízo, não pagam os impostos municipais, se tranformasse em mais um ponto turísco da nossa cidade de São Paulo. Deixem a Vila Itororó falar e ela dirá que a sua vocação é a mesma do bairro, ser um ponto de gastronomia e de cultura. Pela revitalização da Vila Itororó já!

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  11. 271, Martiniano de Carvalho
    Vila Itororó
    de tantos sonhos,
    e de muitas sombras,
    em teus becos eu me perdi
    lá achei um pedaço de vidro,
    e a ele chamei diamante

    http://mauriciomiele.blogspot.com/2011/09/271-martiniano-de-carvalho.html

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  12. ("Não estamos encontrando respostas a nenhuma de nossas perguntas, mas principalmente, para esta: qual motivo para termos que entregar nossas moradias de tantos anos, em troca de um financiamento, ou seja, uma dívida por mais de 25 anos? Como disse o Sr. Secretário em seu depoimento: “não é isso que a gente deseja”!")

    É realmente impressionante a cara-de-pau de quem elabora esta pergunta! Por que trocar uma moradia (que não é sua) em troca de um financiamento de 25 anos?
    Resposta: Para, quem sabe, ser incluído no rol de cidadãos da Cidade de São Paulo. Para, quem sabe, a cada prestação paga, durante os 25 anos, a noite seguinte seja de um sono justo, igual ao daqueles que trabalharam e trabalham para construir esta Cidade e o País e consequentemente lutaram e lutam para ter um teto para a sua familia, adquirido de forma honesta.
    Sou exemplo disto! Cheguei do nordeste recém-casado e fui morar de aluguel, sem nenhum constrangimento e, antes que eu desse aborrecimento ao locador mudei para uma moradia menor pois o meu rendimento não era suficiente para arcar com os meus compromissos. Lutei, estudei em escola pública, trabalhei muito, juntamente com a minha mulher e consegui comprar um teto financiado pelos mesmos 25 anos aos quais você se refere com tanta indignação. Eles transcorreram, não sem apertos e dificuldades, mas meus filhos foram criados sob estes conceitos de cidadania e honestidade e hoje, o mais velho está prestes a receber o diploma universitário. Tenho orgulho da minha vida, da minha familia e da minha moradia, mas acima de tudo tenho orgulho da educação recebida dos meus pais que, no sertão do nordeste, nunca se apropriaram de um só grão que não lhes pertencesse. Lamento pelos filhos daqueles que estão sempre esperando a misericórdia alheia, a esmola e não aprenderam, com os pais, o valor do trabalho, do dinheiro ganho honestamente e dos bem adquiridos com este dinheiro.
    Sugiro a quem formulou esta pergunta que percorra as Instituições Financeiras de Crédito e constatem o tamanho da filas de trabalhadores que tentam um financiamento por 25 anos e se informem do valor das prestações que destes fianciamentos decorrem. O poder público estende a mão e mesmo assim querem o corpo todo.
    Certo está um âncora de noticiário televisivo: "Isto é uma vergonha!"

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  13. Felipe Soeiro18 março, 2012

    Vitimização da pobreza no Brasil. É isso que nos torna um povo mal-educado em todos os sentidos. Já virou lugar comum este discurso de vitimização e injustiça social. Vamos participar do jogo dignamente? Certamente havia muitos trabalhadores morando na Vila, mas o fato de eles ocuparem um local que não é seu já mostra que o conjunto de valores destas pessoas não comporta a palavra respeito ao espaço alheio. Pobre hoje em dia é herói e sua falta de educação, justificada. Viva o Brasil.

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    1. Não creio que seja só “vitimização”, você se equivoca, pois de fato há uma desigualdade que não pode ser distorcida por uma visão que acredita em valores tão rasos, enquanto milhares são de fato usurpados do seu direito de pertencer à cidade, pois enquanto tiverem como elas vão tentar solucionar seu problema e creio que a ética não vai abraçar muito destes só porque tem boa índole, ou trabalham todo dia sem ter estrutura futura pra ter um canto. A mesma desonestidade que você acusa as pessoas que ocupam esse vazio imobiliário especulativo, também se faz presente naqueles que tem mais condições de habitar a cidade, também tomam o que é do outro, só que de uma forma mais sofisticada do que invadindo ou apontando uma arma para roubar. Sei que tanto o que você disse quanto o que eu disse agora são bobagens, pois não há como generalizar qualquer coisa se não se conhece de fato como são as vidas dessas pessoas..

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