“A única luta que se perde é a que se abandona”

Hebe Bonafini, Madres de la Plaza de Mayo

25 setembro 2009

"A HISTÓRIA DESPEJADA" por Camila Souza Ramos

Pela Vila Itororó já passaram migrantes, filhos de escravos, membros da mais alta classe burguesa e toda a miscelânea possível de se encontrar no bairro da Bela Vista, o Bixiga, e na própria cidade de São Paulo. Ainda hoje existem ali 70 famílias que moram nos imóveis construídos na vila há mais de 80 anos, cada uma com suas histórias e lembranças. Mas toda essa diversidade histórica e humana das mais de 70 famílias que ali moram pode ser apagada da história do bairro em breve. Paradoxalmente, para dar lugar a um centro cultural.

A prefeitura de São Paulo quer transformar o espaço da vila em um centro cultural, assim como já acontece em outros pontos da região central de São Paulo. A proposta mais recente de intervenção do poder público na vila foi divulgada em 2006, após a administração municipal ter baixado um decreto que declarava que a Vila Itororó passava a ser uma área de utilidade pública. A medida autorizou a prefeitura a traçar planos para a instalação de equipamentos públicos culturais no local e a retirar os moradores para executar seus projetos.

Recentemente a sombra do despejo se intensificou: no dia 4 de agosto, o juiz Ronaldo Frigini concedeu um mandado de emissão de posse autorizando a desapropriação do terreno, e agora os moradores estão na iminência de ficarem sem casa. A medida só foi possível porque a prefeitura depositou recentemente, em juízo, R$ 8 milhões como indenização aos proprietários dos imóveis da vila. Porém, corre-se o risco de os moradores serem despejados e não verem a cor desse dinheiro.

Essa quantia pode acabar beneficiando a Fundação Leonor de Barros Camargo, mantenedora do Hospital Augusto de Oliveira Camargo em Indaiatuba e atual proprietária da vila. Quando a fundação ainda atendia pela razão social de Instituição Beneficente Augusto de Oliveira Camargo, na década de 1990, ela cobrava aluguéis de seus condôminos na Vila Itororó. Porém, em 1996, de um dia para o outro, os moradores deixaram de ter o aluguel cobrado, e nunca mais a fundação voltou para manter os imóveis conservados. Os moradores continuaram na vila e passaram a cuidar dos imóveis e da área comum em conjunto. A fundação não respondeu aos pedidos de entrevista da Fórum.

"Como a fundação não cobrou mais aluguel nem fez benfeitorias para os imóveis, isso é caracterizado como abandono de propriedade", explica Paulo Leonardo Martins, do Serviço de Assistência Jurídica (SAJU), projeto dos alunos da Faculdade de Direito da USP. O SAJU começou a assessorar juridicamente os moradores em 2007, iniciando então o processo de usucapião. Pelo Estatuto da Cidade, as propriedades urbanas ocupadas há mais de cinco anos e abandonadas pelo proprietário podem ser transferidas para os ocupantes. Segundo o professor de Direito da PUC Celso Fernandes Campilongo, que coordena o SAJU, todos os moradores da Vila Itororó já preenchem os requisitos para serem donos dos imóveis em que moram. "Provavelmente, (os moradores) vencerão essas ações de usucapião, terão sua propriedade reconhecida e o direito à indenização da vila que a prefeitura depositou", diz.


Cultura por todos os lados

Sair da Vila Itororó, porém, não é o desejo de muitos moradores. "Você acha que eu vou morar lá onde Judas perdeu as botas? Não vou, não vou mesmo!", reclama dona Maria Lourdes dos Santos. Residente na vila há 60 anos, dona Leonor hoje mora num sobrado e traçou grande parte de sua história de vida ali. Sua irmã chegou a trabalhar no clube Éden Liberdade, que funcionava no palacete da vila. "Era cada baile com orquestra... um espetáculo! Tinha jogos, a turma frequentava a piscina", lembra. Dona Leonor diz que hoje prefere ficar mais em casa, com a filha e a neta. Com a aposentadoria que recebe, consegue pagar seu remédio para a memória e os itens básicos para viver.

Geralmente quem chega na vila não sai mais. É o que conta Antônia Cândido, que depois de 28 anos morando lá espera em breve o nascimento do neto, que representa a segunda geração a nascer em Itororó. "Trabalho como secretária aqui no centro, para mim é ótimo morar aqui", conta. Outros estão na vila há menos tempo, como Isabel Cristina da Silva, que chegou de Santos há cinco anos e trabalha como babá em casas ao lado da vila. "Se tiver que sair posso ver com as patroas de chegar mais tarde", explica, triste, mas conformada com a possibilidade de ser removida dali.

Mas, antes de ser cenário para tantas histórias, a Vila Itororó também deixou sua marca na história da cidade: a primeira construção nela erguida, o palacete do português Francisco de Castro, tornou-se uma excentricidade pelo estilo arquitetônico chamado de surrealista e por ser o primeiro imóvel em São Paulo a ter uma piscina particular. Piscina que é alimentada pela nascente do rio Itororó, que fica embaixo da própria vila. Ao lado do exótico palacete foram sendo construídas casas bem menores e simples a mando do próprio Francisco de Castro, que queria alugá-las para delas obter renda.

Hoje, apesar da visível degradação das casas e do próprio palacete, muitos moradores querem continuar onde estão por conta da localização, evitando o destino que tiveram muitas pessoas das classes menos favorecidas, forçadas a morar na periferia dos grandes centros urbanos. "A qualquer hora que você sai pelas ruas da Bela Vista você vê pessoas, vê movimento, vê vida dentro do bairro. Sem contar a infraestrutura de hospitais, mercados. O comércio é diversificado", conta Antônia. A futura vovó hoje é líder da Associação de Moradores e Amigos (AMA) da Vila Itororó e uma das defensoras mais aguerridas da permanência dos moradores.
"Qualquer um que ande pelas ruas do bairro hoje vê que o que menos se precisa aqui é cultura", testemunha. A cinco minutos de distância está o Centro Cultural São Paulo, e com mais outros cinco minutos o morador da vila pode estar na Casa das Rosas, no SESC Paulista e no Itaú Cultural. No próprio bairro ainda há uma grande concentração de teatros, cafés, cinemas, bares, e em todo mês de agosto o morador ainda pode se divertir na festa da Aquerupita. Além dos centros culturais, a própria vila é ambiente de produção cultural, como conta Rener. "Aqui sempre tem atividade de origami, roda de capoeira, oficina de desenho, e agora tem um grupo de teatro que vem se apresentar".

Para Raquel Rolnik, relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada, a própria Vila Itororó já é um polo cultural. "Centro cultural não é um lugar, mas é onde as pessoas produzem manifestações culturais diversas. Uma política cultural precisa dar condições adequadas para que essa vida cultural aconteça da melhor forma num espaço bem cuidado", defende.


Direitos complementares

De acordo com a Secretaria Municipal de Cultura, a utilização cultural do palacete pretende ser uma forma de preservar o patrimônio da cidade, tombado na década de 1980 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Com esta solução para garantir o direito à preservação da memória e do patrimônio histórico da cidade, a prefeitura coloca no polo oposto o direito à moradia, contradição esta que o professor Campilongo considera falsa. "A maior memória que a cidade tem não é a memória dos seus prédios e das suas estátuas, mas sim de sua população. Preservar a vida cultural e o ambiente estético é preservar os moradores da cidade, não existe contradição alguma entre os dois direitos". "Os moradores da vila é que são a história dela. Por que, para a cultura atuar dentro da Vila Itororó, sua história tem que ser apagada?" questiona Antônia, que teme que estejam querendo substituir a memória dos 80 anos de história da vila por uma outra memória.

No entanto, a necessidade de recuperação da estrutura física não fica em segundo plano. Segundo Raquel, "do jeito que está, a vila também não atende as necessidades da moradia adequada e de preservação do patrimônio". Para o advogado, a preservação da estrutura física pode ser casada com a preservação dos moradores na vila. "Por que não restaurar esses prédios históricos e deixar para os moradores, que seriam os maiores interessados nisso, que tenham a responsabilidade pela sua manutenção e preservação, deixando a vila ser um centro cultural, mas vivo, com moradores?".

Ele, que já morou em Lecce, na Itália, lembra que não são poucas as cidades europeias com construções que alcançam os 600 anos e são verdadeiros museus vivos: preservadas, e com pessoas morando em seus prédios. "Onde morei, a prefeitura conserta os prédios e impõe algumas obrigações aos moradores, que são fundamentais na preservação do patrimônio. Eles têm que cumprir determinadas obrigações: não podem alterar a obra, nem a fachada. Aquilo está o tempo inteiro um brinco, com o auxílio público, com a fiscalização pública e com os moradores. Se os expulsassem desses centros históricos mais preservados, seria a decadência dos centros", argumenta.

O professor Campilongo acredita que é possível um juiz suspender a desapropriação caso ele entenda a complementaridade dos direitos de preservação do patrimônio e à moradia. "A legislação brasileira atribui um status muito especial ao direito à moradia digna. Bastaria uma interpretação criativa e moderna, que levasse em conta essa legislação, para que fosse suspensa a desapropriação, ou que se promovesse um acordo na ação de desapropriação, condicionando a desapropriação à manutenção dos moradores", sugere, reconhecendo, porém, que é uma luta entre forças desproporcionais.

Futuro indefinido

Como medida preventiva, os advogados do SAJU entrarão com uma medida para paralisar o processo de desapropriação [hiperlink: Pelo artigo 11 do Estatuto da Cidade, na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficam suspensas quaisquer ações que interfiram na posse ou na propriedade sobre o imóvel em questão]. Dessa forma, haveria tempo para passar o título da propriedade dos imóveis aos atuais moradores e a indenização seria dividida proporcionalmente entre eles. O SAJU também entrará com um pedido para congelar a indenização até que se resolvam os processos de usucapião. Outra possibilidade que será tentada, segundo Paulo Leonardo, é a moção de uma ação civil pública pela Defensoria Pública questionando o decreto de desapropriação.

Paulo acredita, porém, que só com mobilização política é possível encontrar uma solução para a vila. Recentemente a associação de moradores foi regularizada e espera-se que agora a prefeitura abra-se ao diálogo. Segundo Antônia, a única opção de moradia apresentada aos moradores foi feita pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do estado, segundo a qual todos os moradores seriam destinados a um prédio abandonado a duas quadras da vila. Porém, ela afirma que o prédio é "inabitável". A CDHU afirma que o prédio, com 59 apartamentos, será reformado até julho de 2010, mas não garantiu que os moradores serão mantidos na Vila Itororó até lá. As outras famílias iriam para dois prédios a serem construídos em frente, onde atualmente há cortiços habitados. A assessoria de imprensa da companhia afirmou que essas famílias seriam incluídas "em algum programa de habitação do CDHU".


História e habitação em harmonia

Com 80 anos de construção, a deterioração dos prédios é bem visível, mas há arquitetos que acreditam ser possível revitalizar as construções da Vila Itororó sem retirar as famílias de suas casas. É o caso da recém-formada Aline Yamamoto, que trabalhou no grupo de pesquisa em habitação coletiva Vida Associada e no escritório-modelo de arquitetura do Mackenzie, dois projetos que elaboraram em propostas para a Vila Itororó. "Para nos posicionar contra o projeto da prefeitura tínhamos que apresentar um contra-projeto", explica Aline.

Após fazerem um levantamento das necessidades dos moradores da vila, os arquitetos chegaram a um projeto que concilia as necessidades habitacionais com a preservação dos prédios históricos. Segundo Aline, o levantamento revelou que o que as pessoas mais desejavam era que o espaço coletivo fosse melhorado. Mesmo assim, as habitações apresentam problemas que necessitam de soluções urgentes: "Tem casas que têm sete famílias em 50m², e há outras como um casal em um apartamento de 100m²". As melhores casas são as instaladas dentro do palacete, mas do outro lado chega a ter morador que só tem um buraco no meio da parede para passar a noite.

A maquete do contra-projeto foi apresentada aos moradores em 2006 e propunha a construção de dois prédios dentro da própria vila, com entrada para a Av. 23 de Maio. A ideia é desadensar as casas superlotadas da vila com apartamentos para atender diferentes demandas, de quitinetes a apartamentos de três dormitórios. O palacete seria esvaziado e poderia se tornar um espaço de convivência da vila, enquanto as casas antigas ao lado continuariam habitadas.

Camila Souza Ramos, Revista Fórum, Set 2009
http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=7558