“A única luta que se perde é a que se abandona”

Hebe Bonafini, Madres de la Plaza de Mayo

16 dezembro 2009

Vila Itororó apresenta a negociações com a SEHAB

Consideração a reunião realizada no dia 30 de novembro do presente ano, entre a Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó (AMAVILA) e o Secretário de Habitação, Elton Santa Fé Zacarias, a Superintendente de Habitação, HelisaBeth França e o Diretor do Habi-Centro, Alonso Lopes, na presença do Vereador Chico Macena, a AMAVILA, vem por meio deste, expressar o interesse na continuidade das negociações em torno da Vila Itororó.

Neste sentido, vale dizer alguns pontos que devem ser considerados nas negociações:

(a) A possibilidade de suspender a execução do mandato de imissão na posse por parte da Fazenda Estadual (processo de desapropriação n° 07.134155-9 – 1° Vara da Fazenda Pública do Estado de São Paulo), garantindo aos moradores da Vila Itororó que somente serão retirados de suas residências, na certeza do oferecimento de moradia que atenda as exigências dos moradores. Em contrapartida, os moradores permitiriam a entrada dos arquitetos, nomeados pelo Município, para a realização das eventuais perícias que sejam necessárias a elaboração do projeto de restauração da Vila Itororó.

(b) O Acesso a maiores informações sobre os empreendimentos do CDHU em relação aos prédios da Rua Conde de São Joaquim. Na hipótese, de tais prédios estarem destinada ao atendimento habitacional dos moradores da Vila, a AMAVILA gostaria de ver demonstrado tal destinação.

(c) A garantia que todos os moradores sejam atendidos pela CDHU e, como já exposto, assegurar que somente serão retirados de suas resistências na Vila Itororó quando tiveram sobre o seu domínio a propriedade de outro imóvel. Considerando que o gasto público é menor se os moradores forem mantidos na Vila Itororó enquanto o Projeto de Recuperação da Vila está sendo formulado.

Por fim, reitera-se, o interesse dos moradores, representados pela AMAVILA, na continuidade das negociações, já sinalizando para uma próxima reunião o mais breve possível.

25 novembro 2009

Vila Itororó cobra soluções de secretário

O Secretário Municipal de Habitação, Elton Santa Fé Zacarias, recebeu hoje o vereador Chico Macena, acompanhado de uma comissão de moradores da Vila Itororó.

A reunião, agendada durante a reunião da Comissão de Política Urbana ocorrida em 25/11, atendendo a um requerimento do próprio vereador, teve como objetivo buscar soluções de habitação para as 79 famílias que moram na Vila Itororó, e que são objeto de uma ação de remoção promovida pela Prefeitura de São Paulo, que pretende transformar o local em um centro cultural.

A solução apresentada pelo Secretário foi a transferência das famílias para as futuras unidades
habitacionais da Cohab que serão construídas na Conde de São Joaquim. As famílias permaneceriam morando na Vila até a conclusão do edital de sua restauração, caso as chaves destas unidades da Cohab sejam entregues durante este tempo, as famílias se mudariam automaticamente, caso não sejam entregues até o fim da licitação da restauração da Vila Itororó, a Secretaria oferecerá uma Bolsa Aluguel de 300 reais para cada família até a entrega das chaves e a transferência definitiva dos moradores ao novo local de moradia.

A AmaVila, Associação dos Moradores da Vila Itororó levará esta proposta a seus moradores, que avaliarão em conjunto e responderão ao secretário em uma semana.

26 setembro 2009

ViLada CuLturaL: 80 anos da Vila Itororó


Programação VILADA Cultural

13h

Abertura da Vilada e cortejo com Trovadores Urbanos

plantio de árvores com o grupo Mapa Xilográfico

14h

15h

Trupe do Trapo - Espetáculo A Máscara da Liberdade

16h

Ponto de Cultura Bixigão - Espetáculo Surubim

17h

Oficinas Culturais

18h

Projeção do filme Flores em vida

18h30

Projeção do filme Tereza

19h

Show com 1/2 dúzia de 3 ou 4

20h

Rapazes da oficina com Vertigem

20h30

Performances com o grupo Parabelo

21h

Capoeira e Roda de Samba - Casa do mestre Ananias, Quilombolas de Luz e Zungu Capoeirado

Ao Fim da roda de samba

Thadeu Romano - Sanfoneiro

A partir das

22h

Festa de 80 anos da Vila Itororó


25 setembro 2009

"A HISTÓRIA DESPEJADA" por Camila Souza Ramos

Pela Vila Itororó já passaram migrantes, filhos de escravos, membros da mais alta classe burguesa e toda a miscelânea possível de se encontrar no bairro da Bela Vista, o Bixiga, e na própria cidade de São Paulo. Ainda hoje existem ali 70 famílias que moram nos imóveis construídos na vila há mais de 80 anos, cada uma com suas histórias e lembranças. Mas toda essa diversidade histórica e humana das mais de 70 famílias que ali moram pode ser apagada da história do bairro em breve. Paradoxalmente, para dar lugar a um centro cultural.

A prefeitura de São Paulo quer transformar o espaço da vila em um centro cultural, assim como já acontece em outros pontos da região central de São Paulo. A proposta mais recente de intervenção do poder público na vila foi divulgada em 2006, após a administração municipal ter baixado um decreto que declarava que a Vila Itororó passava a ser uma área de utilidade pública. A medida autorizou a prefeitura a traçar planos para a instalação de equipamentos públicos culturais no local e a retirar os moradores para executar seus projetos.

Recentemente a sombra do despejo se intensificou: no dia 4 de agosto, o juiz Ronaldo Frigini concedeu um mandado de emissão de posse autorizando a desapropriação do terreno, e agora os moradores estão na iminência de ficarem sem casa. A medida só foi possível porque a prefeitura depositou recentemente, em juízo, R$ 8 milhões como indenização aos proprietários dos imóveis da vila. Porém, corre-se o risco de os moradores serem despejados e não verem a cor desse dinheiro.

Essa quantia pode acabar beneficiando a Fundação Leonor de Barros Camargo, mantenedora do Hospital Augusto de Oliveira Camargo em Indaiatuba e atual proprietária da vila. Quando a fundação ainda atendia pela razão social de Instituição Beneficente Augusto de Oliveira Camargo, na década de 1990, ela cobrava aluguéis de seus condôminos na Vila Itororó. Porém, em 1996, de um dia para o outro, os moradores deixaram de ter o aluguel cobrado, e nunca mais a fundação voltou para manter os imóveis conservados. Os moradores continuaram na vila e passaram a cuidar dos imóveis e da área comum em conjunto. A fundação não respondeu aos pedidos de entrevista da Fórum.

"Como a fundação não cobrou mais aluguel nem fez benfeitorias para os imóveis, isso é caracterizado como abandono de propriedade", explica Paulo Leonardo Martins, do Serviço de Assistência Jurídica (SAJU), projeto dos alunos da Faculdade de Direito da USP. O SAJU começou a assessorar juridicamente os moradores em 2007, iniciando então o processo de usucapião. Pelo Estatuto da Cidade, as propriedades urbanas ocupadas há mais de cinco anos e abandonadas pelo proprietário podem ser transferidas para os ocupantes. Segundo o professor de Direito da PUC Celso Fernandes Campilongo, que coordena o SAJU, todos os moradores da Vila Itororó já preenchem os requisitos para serem donos dos imóveis em que moram. "Provavelmente, (os moradores) vencerão essas ações de usucapião, terão sua propriedade reconhecida e o direito à indenização da vila que a prefeitura depositou", diz.


Cultura por todos os lados

Sair da Vila Itororó, porém, não é o desejo de muitos moradores. "Você acha que eu vou morar lá onde Judas perdeu as botas? Não vou, não vou mesmo!", reclama dona Maria Lourdes dos Santos. Residente na vila há 60 anos, dona Leonor hoje mora num sobrado e traçou grande parte de sua história de vida ali. Sua irmã chegou a trabalhar no clube Éden Liberdade, que funcionava no palacete da vila. "Era cada baile com orquestra... um espetáculo! Tinha jogos, a turma frequentava a piscina", lembra. Dona Leonor diz que hoje prefere ficar mais em casa, com a filha e a neta. Com a aposentadoria que recebe, consegue pagar seu remédio para a memória e os itens básicos para viver.

Geralmente quem chega na vila não sai mais. É o que conta Antônia Cândido, que depois de 28 anos morando lá espera em breve o nascimento do neto, que representa a segunda geração a nascer em Itororó. "Trabalho como secretária aqui no centro, para mim é ótimo morar aqui", conta. Outros estão na vila há menos tempo, como Isabel Cristina da Silva, que chegou de Santos há cinco anos e trabalha como babá em casas ao lado da vila. "Se tiver que sair posso ver com as patroas de chegar mais tarde", explica, triste, mas conformada com a possibilidade de ser removida dali.

Mas, antes de ser cenário para tantas histórias, a Vila Itororó também deixou sua marca na história da cidade: a primeira construção nela erguida, o palacete do português Francisco de Castro, tornou-se uma excentricidade pelo estilo arquitetônico chamado de surrealista e por ser o primeiro imóvel em São Paulo a ter uma piscina particular. Piscina que é alimentada pela nascente do rio Itororó, que fica embaixo da própria vila. Ao lado do exótico palacete foram sendo construídas casas bem menores e simples a mando do próprio Francisco de Castro, que queria alugá-las para delas obter renda.

Hoje, apesar da visível degradação das casas e do próprio palacete, muitos moradores querem continuar onde estão por conta da localização, evitando o destino que tiveram muitas pessoas das classes menos favorecidas, forçadas a morar na periferia dos grandes centros urbanos. "A qualquer hora que você sai pelas ruas da Bela Vista você vê pessoas, vê movimento, vê vida dentro do bairro. Sem contar a infraestrutura de hospitais, mercados. O comércio é diversificado", conta Antônia. A futura vovó hoje é líder da Associação de Moradores e Amigos (AMA) da Vila Itororó e uma das defensoras mais aguerridas da permanência dos moradores.
"Qualquer um que ande pelas ruas do bairro hoje vê que o que menos se precisa aqui é cultura", testemunha. A cinco minutos de distância está o Centro Cultural São Paulo, e com mais outros cinco minutos o morador da vila pode estar na Casa das Rosas, no SESC Paulista e no Itaú Cultural. No próprio bairro ainda há uma grande concentração de teatros, cafés, cinemas, bares, e em todo mês de agosto o morador ainda pode se divertir na festa da Aquerupita. Além dos centros culturais, a própria vila é ambiente de produção cultural, como conta Rener. "Aqui sempre tem atividade de origami, roda de capoeira, oficina de desenho, e agora tem um grupo de teatro que vem se apresentar".

Para Raquel Rolnik, relatora da ONU para o Direito à Moradia Adequada, a própria Vila Itororó já é um polo cultural. "Centro cultural não é um lugar, mas é onde as pessoas produzem manifestações culturais diversas. Uma política cultural precisa dar condições adequadas para que essa vida cultural aconteça da melhor forma num espaço bem cuidado", defende.


Direitos complementares

De acordo com a Secretaria Municipal de Cultura, a utilização cultural do palacete pretende ser uma forma de preservar o patrimônio da cidade, tombado na década de 1980 pelo Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Histórico, Cultural e Ambiental da Cidade de São Paulo (Conpresp). Com esta solução para garantir o direito à preservação da memória e do patrimônio histórico da cidade, a prefeitura coloca no polo oposto o direito à moradia, contradição esta que o professor Campilongo considera falsa. "A maior memória que a cidade tem não é a memória dos seus prédios e das suas estátuas, mas sim de sua população. Preservar a vida cultural e o ambiente estético é preservar os moradores da cidade, não existe contradição alguma entre os dois direitos". "Os moradores da vila é que são a história dela. Por que, para a cultura atuar dentro da Vila Itororó, sua história tem que ser apagada?" questiona Antônia, que teme que estejam querendo substituir a memória dos 80 anos de história da vila por uma outra memória.

No entanto, a necessidade de recuperação da estrutura física não fica em segundo plano. Segundo Raquel, "do jeito que está, a vila também não atende as necessidades da moradia adequada e de preservação do patrimônio". Para o advogado, a preservação da estrutura física pode ser casada com a preservação dos moradores na vila. "Por que não restaurar esses prédios históricos e deixar para os moradores, que seriam os maiores interessados nisso, que tenham a responsabilidade pela sua manutenção e preservação, deixando a vila ser um centro cultural, mas vivo, com moradores?".

Ele, que já morou em Lecce, na Itália, lembra que não são poucas as cidades europeias com construções que alcançam os 600 anos e são verdadeiros museus vivos: preservadas, e com pessoas morando em seus prédios. "Onde morei, a prefeitura conserta os prédios e impõe algumas obrigações aos moradores, que são fundamentais na preservação do patrimônio. Eles têm que cumprir determinadas obrigações: não podem alterar a obra, nem a fachada. Aquilo está o tempo inteiro um brinco, com o auxílio público, com a fiscalização pública e com os moradores. Se os expulsassem desses centros históricos mais preservados, seria a decadência dos centros", argumenta.

O professor Campilongo acredita que é possível um juiz suspender a desapropriação caso ele entenda a complementaridade dos direitos de preservação do patrimônio e à moradia. "A legislação brasileira atribui um status muito especial ao direito à moradia digna. Bastaria uma interpretação criativa e moderna, que levasse em conta essa legislação, para que fosse suspensa a desapropriação, ou que se promovesse um acordo na ação de desapropriação, condicionando a desapropriação à manutenção dos moradores", sugere, reconhecendo, porém, que é uma luta entre forças desproporcionais.

Futuro indefinido

Como medida preventiva, os advogados do SAJU entrarão com uma medida para paralisar o processo de desapropriação [hiperlink: Pelo artigo 11 do Estatuto da Cidade, na pendência da ação de usucapião especial urbana, ficam suspensas quaisquer ações que interfiram na posse ou na propriedade sobre o imóvel em questão]. Dessa forma, haveria tempo para passar o título da propriedade dos imóveis aos atuais moradores e a indenização seria dividida proporcionalmente entre eles. O SAJU também entrará com um pedido para congelar a indenização até que se resolvam os processos de usucapião. Outra possibilidade que será tentada, segundo Paulo Leonardo, é a moção de uma ação civil pública pela Defensoria Pública questionando o decreto de desapropriação.

Paulo acredita, porém, que só com mobilização política é possível encontrar uma solução para a vila. Recentemente a associação de moradores foi regularizada e espera-se que agora a prefeitura abra-se ao diálogo. Segundo Antônia, a única opção de moradia apresentada aos moradores foi feita pela Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), do estado, segundo a qual todos os moradores seriam destinados a um prédio abandonado a duas quadras da vila. Porém, ela afirma que o prédio é "inabitável". A CDHU afirma que o prédio, com 59 apartamentos, será reformado até julho de 2010, mas não garantiu que os moradores serão mantidos na Vila Itororó até lá. As outras famílias iriam para dois prédios a serem construídos em frente, onde atualmente há cortiços habitados. A assessoria de imprensa da companhia afirmou que essas famílias seriam incluídas "em algum programa de habitação do CDHU".


História e habitação em harmonia

Com 80 anos de construção, a deterioração dos prédios é bem visível, mas há arquitetos que acreditam ser possível revitalizar as construções da Vila Itororó sem retirar as famílias de suas casas. É o caso da recém-formada Aline Yamamoto, que trabalhou no grupo de pesquisa em habitação coletiva Vida Associada e no escritório-modelo de arquitetura do Mackenzie, dois projetos que elaboraram em propostas para a Vila Itororó. "Para nos posicionar contra o projeto da prefeitura tínhamos que apresentar um contra-projeto", explica Aline.

Após fazerem um levantamento das necessidades dos moradores da vila, os arquitetos chegaram a um projeto que concilia as necessidades habitacionais com a preservação dos prédios históricos. Segundo Aline, o levantamento revelou que o que as pessoas mais desejavam era que o espaço coletivo fosse melhorado. Mesmo assim, as habitações apresentam problemas que necessitam de soluções urgentes: "Tem casas que têm sete famílias em 50m², e há outras como um casal em um apartamento de 100m²". As melhores casas são as instaladas dentro do palacete, mas do outro lado chega a ter morador que só tem um buraco no meio da parede para passar a noite.

A maquete do contra-projeto foi apresentada aos moradores em 2006 e propunha a construção de dois prédios dentro da própria vila, com entrada para a Av. 23 de Maio. A ideia é desadensar as casas superlotadas da vila com apartamentos para atender diferentes demandas, de quitinetes a apartamentos de três dormitórios. O palacete seria esvaziado e poderia se tornar um espaço de convivência da vila, enquanto as casas antigas ao lado continuariam habitadas.

Camila Souza Ramos, Revista Fórum, Set 2009
http://www.revistaforum.com.br/sitefinal/EdicaoNoticiaIntegra.asp?id_artigo=7558

24 setembro 2009

"A HISTÓRIA DO PALACETE SURREALISTA QUE VIROU CASA DE GENTE SIMPLES" por Patrícia Benvenuti

Cerca de 250 pessoas fazem parte da história viva da vila urbana mais antiga de São Paulo e lutam para resistir à especulação imobiliária

24/09/2009

No início eram bailes, orquestras e uma proposta arquitetônica inovadora. Oito décadas depois, degradação, incertezas e ações judiciais tomam o cenário da Vila Itororó, no bairro do Bixiga, região central de São Paulo. Mais antiga vila urbana da cidade, o espaço virou o foco de uma disputa entre o poder público, que diz ter planos para restaurar seu patrimônio histórico, e os moradores, que lutam para continuar vivendo no local e ter seus direitos reconhecidos.
Em agosto desse ano, a 1ª Vara da Fazenda Pública determinou a imissão provisória na posse para Secretaria de Estado da Cultura, após o depósito, em juízo, do valor de oito milhões de reais, correspondente à indenizaçã o devida à Fundação Leonor de Barros Carvalho, atual proprietária da vila, desapropriada em 2006.

Das mãos do governo do Estado o conjunto será repassado à Prefeitura de São Paulo, que pretende transformá-lo em um centro cultural por meio de um projeto elaborado pela Secretaria Municipal de Cultura. Como consequência, devem ser removidas da vila cerca de 250 pessoas, que não sabem qual será o seu destino.


“A vila era linda”
Foi aos 20 e poucos anos que Maria de Lourdes Di Donato se mudou para a Vila Itororó e, de lá, nunca saiu. Natural de Laranjal Paulista, interior de São Paulo, a aposentada de 79 anos tem mais de 60 de vila e é hoje a moradora mais antiga. Da cozinha de sua casa, com vista para o pátio coletivo, ela relembra os bons tempos do lugar.

"A vila foi maravilhosa. Muito bem organizada, nunca teve uma sujeira, tudo arrumadinho. Era um espetáculo, a vila era linda”, relata.

A vizinhança também era excelente, garante Lourdes, que se anima mais quando conta do clube que existia dentro da vila. Com festas, esgrima e outros esportes, o clube era o ponto de encontro entre os moradores.

"Cada baile que tinha, gente, com orquestra. Minha irmã foi diretora por muitos anos. Tinha muita festa ali, tinha festa de São João. A piscina era uma delícia, a gente fazia churrasco no sábado, passava os convites para os conhecidos. Era muito gostoso. Tudo acaba, né?", lamenta.

Idealizada pelo tecelão português Francisco de Castro durante os anos 20, a vila foi concluída em 1929, dando origem a um palacete cercado por 37 casas de aluguel. O terreno, de 4,5 mil metros quadrados, ocupa meia quadra entre as ruas Martiniano de Carvalho, Monsenhor Passalaqua, Maestro Cardim e Pedroso.

Em sua construção, foram utilizadas partes do antigo teatro São José, incendiado em 1917, como carrancas, brasões, vitrais circulares e dois grandes leões que guardam a entrada do palacete, que serviu de moradia para o tecelão português.

O palacete e algumas casas são as únicas edificações que podem ser vistas da rua Martiniano de Carvalho. Isso porque a vila foi construída em um desnível de dez metros – para acessar as outras casas, é preciso descer uma longa escadaria, que chega ao pátio central.

A vila também foi a primeira na cidade a ter uma piscina residencial, utilizando-se do riacho do Vale Itororó, que passava onde, atualmente, está a Avenida Vinte e Três de Maio. Toda a extravagância rendeu-lhe o apelido, na época, de “Casa Surrealista”.


Degradação
Com a morte de Castro, na década de 1950, a vila foi leiloada para o pagamento de dívidas da tecelagem. Arrematada por credores, duas décadas mais tarde a vila foi doada à Fundação Leonor de Barros Carvalho, que cuida da Santa Casa de Indaiatuba, no interior paulista.

Nessa mesma época, o conjunto, tombado pelo Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado de São Paulo (Condephaat), ganhou seus primeiros planos de restauração. Em 1976, os arquitetos Benedito Lima de Toledo, Cláudio Tozzi e Décio Tozzi desenvolveram um projeto que previa a transformação da vila em um centro cultural.

Os moradores continuaram com seus contratos de locação até o início da década de 1990, pagando o aluguel regularmente a uma imobiliária que administrava o espaço.

Em 1997, porém, a imobiliária parou de enviar os boletos de cobrança e a Fundação, que detinha o título de propriedade, deixou de se comunicar com os inquilinos, como explica o morador João Manuel Aureliano, de 57 anos.

"A gente pagava aluguel e tudo o mais no banco, mas depois abandonaram. Foi a própria firma, a empresa, que disse que não era mais para pagar aluguel de forma nenhuma porque disseram que iam vender. Aí parei de pagar, mas mesmo assim pago água e luz direitinho", conta.

Para Aureliano, que mora na vila desde 1978, foi no momento em que a Fundação abandonou o imóvel que começaram alguns problemas, como ocupações irregulares e construções improvisadas.

“Aí não se pagava mais o aluguel e começaram a fazer casinhas, barracos e mais barracos", diz.

A deterioração tem sido crescente na vila, e é difícil vislumbrar a obra original. A maioria das casas apresenta problemas estruturais, como infiltrações e rachaduras nas paredes. Além disso, muitas instalações hidráulicas e elétricas são inadequadas e a iluminação e ventilação são precárias.

A degradação atingiu, ainda, o material trazido do antigo teatro, como as estátuas que adornavam o palacete. Dos leões que guardavam sua entrada resta apenas um, e os demais objetos estão em péssimo estado de conservação.

As áreas comuns da vila também estão tomadas pelo lixo. Na área central restam os entulhos de cinco casas demolidas há décadas e os equipamentos enferrujados de uma tinturaria que funcionou dentro da vila e que chegou a tingir roupas dentro da piscina – que hoje apenas acumula água parada.

“Acabou o sossego que a gente tinha, porque isso era um sossego. Hoje em dia não está mais como era, de forma nenhuma essa desorganização”, lastima.

Em 2005, a vila chegou a ser cogitada para integrar o Programa de Recuperação de Cortiços, mas em 23 de janeiro de 2006 o então prefeito da cidade, José Serra (PSDB), assinou um decreto de utilidade pública que previa sua desapropriação, obras de recuperação e posterior uso para atividades de educação, cultura, turismo e lazer.


Irregularidades
O processo de desapropriação, porém, é questionado pelos moradores, que reclamam de irregularidades. Auxiliados pelo Serviço de Assessoria Jurídica da Universidade de São Paulo (Saju), eles tentam, na Justiça, obter seus direitos.
A estudante de Direito Bianca Tavolari, do Saju, que assessora os moradores, explica que o abandono definitivo da propriedade por parte da Fundação dá aos atuais residentes na vila o direito ao usucapião urbano (direito que um cidadão adquire sobre um imóvel em decorrência de seu uso por determinado tempo) e, em caso de desapropriação e indenização, de serem os beneficiados.

"Pelo Estatuto da Cidade, você tendo morado cinco anos no lugar, não tendo outro imóvel registrado no seu nome e ninguém tendo contestado a posse, ou seja, ter dito que aquele imóvel pertence a outra pessoa, a pessoa tem o direito de propriedade sobre o lugar", explica.

Os moradores ajuizaram pedido de usucapião em novembro do ano passado. De acordo com o Estatuto da Cidade, toda ação de desapropriação deve ser paralisada automaticamente se houver um processo de usucapião pendente. No caso da Vila Itororó, a lei não está sendo cumprida.

"No Estatuto da Cidade tem um artigo que fala que toda a ação de desapropriação vai ter que parar uma vez que tiver uma ação de usucapião, porque primeiro vê de quem é e, depois, indeniza aquelas pessoas. E, se tiver que ter uma indenização, que seja para os moradores", argumenta Bianca.

A Justiça, porém, vem negando todos os recursos propostos pelos moradores da vila. Assim, a tendência é de que o processo de desapropriação seja concluído antes das ações de usucapião, o que acarretará o despejo das cerca de 70 famílias.

"Com a desapropriação, as pessoas saem daqui, e, saindo daqui, elas só vão ter acesso a esse dinheiro [da indenização] no final da ação de usucapião. Ou seja, as pessoas vão ficar dois, três, quatro anos ou mais sem terem nada por ter dado as casas para a Prefeitura", afirma o estudante Riccardo Silva, do Saju, que assegura ainda que o próprio mecanismo da desapropriação prevê que as indenizações sejam justas e prévias para que os moradores não sejam prejudicados.

"Eu estou esperando eles falarem alguma coisa sobre a minha casa, mas meu direito eu quero ter. Se pedirem minha casa, eu dou, mas vão ter que pagar a minha indenização ou me dar outro lugar para morar. Eu moro aqui há 38 anos, não quero ir para a rua”, afirma Aureliano.


Revolta
A falta de informações também traz revolta. A presidente da Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó (AMAVila), Antonia Souza Candido, conta que as notificações sobre o caso chegaram somente até 2006. Desde então, não houve mais contato por parte da Prefeitura.

"O que a gente sabe é o que está nos noticiários, notícias que nos chegam através do Judiciário, porque do poder público mesmo é um silêncio total. A gente não tem nenhum tipo de esclarecimento, nenhum tipo de contato. Esse espaço não nos é aberto, e eu acho que o poder público nos deve essa satisfação", afirma.

Antonia também conta que, ainda em 2006, houve uma tentativa de negociação com as famílias, que receberam a oferta de cartas de crédito que variavam entre 22 mil e 40 mil reais para apartamentos em um prédio na rua Conde de São Joaquim, próximo à vila. Uma parcela mínima dos moradores, porém, poderia participar do programa de financiamento.

“Só 5% [dos moradores] preenchiam todos os requisitos necessários, porque você tem que comprovar uma renda, não pode ser maior que 65 anos, não agrega renda de irmãos e de filhos. Então ficou muito restrito”, relata.


Indefinição
Se o futuro dos moradores parece incerto, o mesmo acontece com a própria vila. De acordo com a Secretaria Municipal de Cultura, somente após a desapropriação e remoção será apresentado um projeto para restauração do local, que será de responsabilidade da própria pasta.

A arquiteta Aline Fidalgo Yamamoto, que também integra a AMAVila, lembra que, em 2006, a Prefeitura já havia apresentado um projeto para recuperação da vila durante uma audiência pública na Câmara Municipal. Ela descreve, porém, que o projeto exposto era apenas uma revisão do esboço elaborado em 1976.

"Esse projeto que foi 'lançado' em 2006 é um projeto já da década de 1970. O que eu vejo, como arquiteta, comparando os dois projetos, é que não tem muita diferença. E nossa primeira crítica é justamente essa, a cidade mudou em 30 anos, da década de 70 para 2006, e o projeto é o mesmo", avalia.

A incorporação da vila como um assunto da Secretaria de Cultura também é questionada pelos moradores. Aline frisa que, até 2005, a vila era um tema tratado pela Secretaria Municipal de Habitação (Sehab), transferido de pasta após o decreto de desapropriação.

"A gente queria ter a chance de perguntar a eles porque mudou de assunto, deixou de ser um assunto de habitação e passou a ser cultural", comenta.

Além dessa resposta, os moradores esperam uma oportunidade para apresentar à Prefeitura um projeto alternativo para a vila, criado em parceria com o Escritório Modelo da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo Mackenzie e com o Grupo de Pesquisa em Habitação Vida Associada. O diferencial da proposta, de acordo com Aline, é justamente o que o poder público considera inviável: a permanência dos moradores junto com um programa de reurbanização. No projeto sugerido, os sobrados precários seriam retirados e as famílias distribuídas de maneira mais adequada, de forma a organizar todo o espaço.

"Todo arquiteto sabe que é possível, basta você querer fazer um programa de uso que contemple os moradores. A gente mostrou que é viável ter uma densidade normal média de habitantes por metro quadrado na vila junto com os usos culturais de geração de renda ", assegura.

As possibilidades para implantar uma iniciativa do tipo, no entanto, esbarram em entraves, como a cultura de restauração de patrimônio histórico predominante, que não lida bem com a concepção de recuperar ambientes para uso habitacional.

"Isso ainda é um tabu principalmente entre acadêmicos da área de patrimônio que estudam restauração porque a cultura de restauro aqui no Brasil, principalmente em grandes capitais brasileiras, é transformar tudo em centro cultural. Aí você deixa nas mãos dos bancos, e eles, obviamente, conseguem fazer a manutenção", ressalta Aline.


Especulação, novamente
A maior dificuldade para os moradores da Vila Itororó, porém, é a luta contra a especulação imobiliária. O interesse, para a presidente da AMAVila, está em sua localização: a cerca de 15 minutos da Avenida Paulista, a vila está entre as avenidas Vinte e Três de Maio e Brigadeiro Luís Antônio e próxima a estações de metrô na região da Bela Vista, uma das mais valorizadas da cidade.

"É a localização da Vila Itororó, é privilegiada demais. Você tem acesso a qualquer ponto de São Paulo a partir daqui. É fácil de a gente entender o que eles querem. Porque é muito fácil a Prefeitura, o poder público ou seja lá quem for passar o palacete da Vila Itororó para uma agência bancária", aponta.

Antonia rejeita ainda a ideia de que a vila, transformada em polo cultural, traga vantagens ao conjunto de cidadãos paulistanos. Para ela, a tendência é de que o local atenda apenas um público muito restrito.

"Agências bancárias é utilidade pública? Cafés é utilidade pública? Teatro é utilidade pública? Basta meia hora de passeio pela Bela Vista e você tem cultura a cada esquina. Mas eu não tenho creches, unidades básicas de saúde, centro profissionalizante para jovens, eu não tenho nada disso. Isso é utilidade pública. Mas eu não conheço que público eles querem atingir", enfatiza.

A Vila Itororó também ilustra, para Bianca Tavolari, do Saju, a política que tem sido regra para o centro não apenas de São Paulo, mas de outras grandes cidades no país: a prioridade para estabelecimentos comerciais no lugar de moradias, com a retirada gradual de seus moradores, especialmente os de baixa renda.

"Há uma questão habitacional muito forte no centro de São Paulo, muitos vazios urbanos e pessoas que estão tendo que morar debaixo do viaduto porque não tem uma política, de fato, que contemple, que pense nas pessoas", analisa.

"Na certa eles querem uma outra Júlio Prestes, Sala São Paulo [no bairro da Luz, região central], que é uma cidade-fantasma, visitada por poucos, meia-dúzia de abastados, que, depois de uma hora, se torna um imenso deserto. É um centro de São Paulo morto", sentencia Antonia.

O poder público
Procurada pela reportagem, a Secretaria Municipal de Cultura apenas informou, por meio de sua assessoria de imprensa, que ainda não há um projeto executivo estabelecido para a vila, e que "essa segunda etapa só será delineada após a efetiva desapropriação do prédio". O órgão declarou ainda que no início do próximo ano deve haver uma proposta mais definida, com estimativa de custos e prazos.

Já a assessoria da Secretaria Municipal de Habitação afirmou que serão disponibilizadas aos moradores bolsas-aluguel durante um ano no valor de 300 reais - quantia considerada suficiente para que as famílias permaneçam na região da Bela Vista, que conta, segundo a Sehab, com 700 cortiços regularizados.

A Companhia de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), responsável pelas futuras moradias, por sua vez, informou que três conjuntos habitacionais na rua Conde de São Joaquim deverão receber os moradores da Vila Itororó.
O primeiro dos empreendimentos, o chamado "Bela Vista D", será o próprio prédio existente no local que, após uma reforma, terá 59 apartamentos. As obras, já contratadas, esperam aprovação do projeto no Condephaat. Segundo a CDHU, serão construídos ainda os empreendimentos Bela Vista E, com 21 unidades, e Bela Vista G, com 104, cujos projetos estão em fase de elaboração.


Negociação
Os moradores tentam, agora, uma reunião com a Secretaria de Habitação e uma nova audiência pública na Câmara Municipal, a fim de discutir o futuro da vila.

O temor dos moradores é que aconteça a eles o que já ocorreu em outros locais: sem condições de arcar com os custos do financiamento, recebem apenas uma quantia, que não é suficiente para obter outra moradia.

“Não chegou a ser oferecido isso, mas a gente sabe que faz parte do pacote. Se você não tem renda para uma carta de crédito eles te dão dois ou três mil reais e você volta pra sua terra de origem ou você compra um barraquinho em qualquer ponto da periferia”, pontua.

Na comunidade de Paraisópolis, vizinha do bairro nobre do Morumbi, na zona sul de São Paulo, dezenas de famílias perderam suas casas e estão alojadas em albergues devido a obras de reurbanização realizadas pelo poder municipal, em parceria com a construtora Camargo Correa. O mesmo acontece na Favela do Sapo, na zona norte da cidade, onde, só neste ano, centenas de famílias foram despejadas.

Para tornar o caso da vila conhecido e evitar um despejo, a Associação de Moradores tem promovido encontros e festas que, além de arrecadarem dinheiro para a entidade, servem para recuperar os 80 anos da vila e mostrar a disposição dos moradores de continuarem vivendo ali.

"O que a gente quer é negociar, não só as nossas moradias mas a nossa dignidade e o nosso ponto histórico dentro da Vila Itororó, porque, querendo ou não, nós fazemos parte dessa história da vila que eles frisam tanto que querem preservar", ressalta Antonia, quase há três décadas residindo ali. "Não serão tijolos, concreto ou carranca e adornos que contarão a história de um lugar, serão seus habitantes", completa a presidente da AMAVila.


Patrícia Benvenuti, Jornal Brasil de Fato, edição 343
http://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/a-historia-do-palacete-surrealista-que-virou-a-casa-de-gente-simples