“A única luta que se perde é a que se abandona”

Hebe Bonafini, Madres de la Plaza de Mayo

17 setembro 2009

VILA ITORORÓ: O PATRIMÔNIO HUMANO EM QUESTÃO

A quadra onde se localiza a Vila Itororó, no bairro da Bela Vista, centro de São Paulo, entrou em processo de desapropriação após um Decreto de Utilidade Pública ter sido assinado em 23 de Janeiro de 2006 pela Prefeitura Municipal de São Paulo, e em 22 de Dezembro de 2006 pelo Governo do Estado de São Paulo.

A Secretaria Municipal de Cultura (SMC) retomou a proposta de intervenção nesta quadra, datada originalmente da década de 70, para realização de um projeto que prevê a transformação da área em “um pólo cultural com ênfase no uso cultural e educacional, proporcionando (...) atividades ligadas a teatro, cinema e museu.” Segundo o arquiteto José Eduardo de Assis Lefèvre, esta “idéia estava nos planos do criador do conjunto”. E, de fato, estava; porém, quando Francisco de Castro idealizou este lugar – há 80 anos –, priorizou o uso residencial, edificando cerca de 40 casas para locação. E para integrá-las aos usos de lazer, Castro construiu uma piscina particular para os moradores, e desenhou no meio desta quadra, um generoso pátio, que até hoje, é o espaço coletivo, de encontro e de diversão dos cerca de 200 moradores da Vila.
Segundo publicação no Diário Oficial de 14 de Maio de 2005, a Vila Itororó seria o “próximo passo” dentro de um programa de readequação de cortiços, baseado na Lei Moura, no qual a Secretaria Municipal de Habitação (SEHAB) vinha trabalhando até então.

Portanto, a primeira questão que se coloca, é o fato da chamada “Recuperação Urbana da Vila Itororó” passar a ser coordenada pela SMC, e “sutilmente” sair da pasta da SEHAB. Esta transferência se deu por qual motivo? Seria uma estratégia para se fazer cumprir com a atual política urbana excludente? É uma ingenuidade achar que não; afinal, não é coincidência este decreto para desapropriação na Vila Itororó ocorrer na mesma gestão em que vimos os despejos das mais de 500 famílias do Edifício Prestes Maia, das famílias de cortiços na Rua Conde de São Joaquim, das famílias no Capão Redondo, a proposta de demolição dos edifícios São Vito e Mercúrio, dentre outros casos; e por que não citar, o Projeto da Nova Luz!

Sabe-se que a Vila Itororó foi tombada pelo Conpresp (órgão municipal) conforme as resoluções 01/ 93 e 22/ 02, e pelo Condephaat (órgão estadual) conforme a resolução SC-9 de 10/03/2005. De acordo com texto descritivo da proposta atual da PMSP, “(...) apenas uma intervenção direta como a que agora se anuncia permitirá reverter a (...) degradação da construção por falta de manutenção”.

Coloco aqui uma segunda questão: a manutenção da área não deveria ser monitorada pelos órgãos de patrimônio, que por vários anos se omitiram desta responsabilidade, inclusive se relembrarmos as demolições realizadas pela proprietária no ano seguinte (em 1994) ao tombamento? A manutenção de um imóvel alugado não deveria ser cobrada dos proprietários – no caso, a Fundação Leonor de Barros Camargo? A situação torna-se mais agravante se levarmos em consideração o fato desta proprietária ter abandonado a área há mais de dez anos (em 1997), quando parou de cobrar os aluguéis, deixando assim, todos os moradores em uma situação irregular, conseqüência de sua ingerência e descaso.

Ainda, segundo artigo publicado na página da SMC na internet em 13 de Fevereiro de 2006 “uma das idéias é criar a Casa Flávio Império em uma das residências tombadas”. Neste momento, faço questão de reproduzir um trecho do livro “Políticas Culturais e Negócios Urbanos” de autoria da arquiteta e urbanista Beatriz Kara José, que se refere a uma declaração do próprio Flávio Império, a respeito do projeto proposto na década de 70:

“Analisando o processo que tramitava pelo CONDEPHAAT, o arquiteto e conselheiro do órgão estadual, Flávio Império, indignou-se com a concepção de cultura que norteara o projeto, classificada por ele como uma interpretação ‘altamente folclórica’ e ‘alienada’, e criticou o tipo de utilização atribuída ao bem cultural. (...), ao propor a completa troca de uso, passava por cima da população então residente, que dependia da proximidade do centro para trabalhar e dos baixos aluguéis possibilitados pela transformação dos edifícios em residências multifamiliares.”

Flávio Império ainda afirma:

“a preservação não envolve apenas a consideração do passado, mas, sobretudo, a do presente. (...) o patrimônio tem um papel social mais amplo do que representar o passado”.

Nesse sentido, arquitetos e urbanistas do “Vida Associada”, grupo de pesquisa em habitação, do qual fiz parte, juntamente aos estudantes do escritório-modelo da FAU-Mackenzie, desenvolveram um projeto para esta quadra, de acordo com uma solicitação da então Comissão de Moradores da Vila Itororó. Foram realizadas reuniões para entendimento das necessidades, um levantamento das condições de habitabilidade, a identificação das famílias e a quantidade de moradores em cada edificação. Durante esta etapa, os moradores foram claros em nos dizer que as únicas necessidades naquele momento, além da moradia digna, era a melhoria dos espaços coletivos da Vila – o pátio e a recuperação da piscina – já que educação, cultura, lazer, transporte, saúde, serviços, comércio e emprego, o bairro já atende muito bem; além do fato da Vila Itororó já ter se constituído ao longo do tempo, como um espaço de produção cultural – há dois grupos de artistas–residentes atuando constantemente no local: o “(EM)pulso Coletivo” e o “Mapa Xilográfico”.

A partir dessas informações, este projeto solicitado pelos moradores, preserva a qualidade urbana da implantação da Vila, mantendo–a integrada e aberta para a cidade, e prevê a quantidade de unidades habitacionais suficientes para desadensar as casas menores, preservando o edifício maior, conhecido como “palacete”, para usos comunitários e de interesse dos moradores.

A prática do restauro de bens tombados e/ou de valor histórico para o uso habitacional ainda é incipiente neste país, pois comumente se recorre ao discurso da cultura como uma “solução–coringa” na maioria dos casos, já que o Estado depende de verbas privadas para sustentar, de forma adequada, a manutenção de um imóvel.

Considero de extrema importância citar aqui os casos em que foram possíveis a recuperação e a restauração de imóveis históricos para habitação, em algumas cidades brasileiras, como por exemplo: o Casarão Celso Garcia e o Edifício Riskallah Jorge no centro de SP, o Hotel Umbu no centro de Porto Alegre, alguns casarões da Rua Senador Pompeu no RJ e também o Casarão da Rua da Palma, no Centro Histórico de São Luís.

Hoje temos à disposição alguns instrumentos que são fundamentais nessa luta pelo direito à moradia digna: o Plano Diretor, o Estatuto das Cidades, e logicamente, a Constituição Brasileira; sem falar na criação do Ministério das Cidades em 2003. Mas ainda assim, defensores da proposta atual da PMSP ignoram as graves conseqüências que a não-utilização desses instrumentos pode acarretar.

Há cerca de três anos, a AMAVila (Associação de Moradores e Amigos da Vila Itororó) conta com a competente atuação do SAJU – Serviço de Assessoria Jurídica da USP – sob coordenação do Prof. Celso Campilongo e do advogado Rodrigo Ribeiro. Em 2008 foi dada entrada em um pedido declaratório de Usucapião Especial Urbano (nº. 136490-1 /08, distribuída na 2ª Vara de Registros Públicos da Capital), a fim de garantir a permanência dos moradores na Vila. Neste processo, foi negado o pedido de liminar de suspensão da desapropriação, contrariando o que estabelece o artigo 11 do Estatuto da Cidade (Lei 10.257 /01) que enquanto não há a declaração da ação de usucapião, “ficarão sobrestadas quaisquer outras ações, petitórias ou possessórias (...)”. Isso ocorreu porque a juíza do caso entende que posse e propriedade são institutos diferentes, logo, a interrupção da posse no processo de desapropriação não iria interferir no possível reconhecimento do direito de propriedade a partir da declaração da Usucapião.

Em 04 de agosto de 2009, o juiz da 1ª Vara da Fazenda Pública concedeu a liminar da imissão na posse, após a Prefeitura ter depositado em juízo o valor indicado pelo laudo pericial – aproximadamente R$ 9 milhões – como aquele correspondente à indenização, à proprietária. Com isso, os moradores estão na iminência do despejo, sem que tenha sido assegurado qualquer garantia de moradia, e sem que o Poder Público tenha aberto qualquer tipo de diálogo com a comunidade.

Considerando estes pressupostos, torna-se redundante dizer que o projeto proposto pela SMC em 2006 é, sem sombra de dúvidas, inadequado, descontextualizado, desrespeitoso, excludente, insustentável, alienado, e reflete aquilo que Ermínia Maricato chama de “aversão neoliberal às políticas sociais”, justamente em um momento em que toda Universidade, movimentos sociais, e políticos comprometidos com uma gestão de fato democrática das cidades, discutem como repovoar os centros das grandes cidades. Preservar o patrimônio histórico é principalmente preservar aquele que lhe dá seu valor: o patrimônio humano.

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por Aline Fidalgo Yamamoto, arquiteta e urbanista, em Set.2009

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