matéria originalmente publicada em:
http://www.brasildefato.com.br/node/12213
Para dar lugar a centro cultural, Vila Itororó perde seus últimos
moradores; despejadas, famílias não recebem atendimento habitacional
Patrícia Benvenuti
da Reportagem
Depois de oito décadas de vidas e histórias, a Vila Itororó está
vazia. Em 20 de fevereiro, foram despejadas as últimas famílias que
viviam no conjunto arquitetônico localizado no bairro do Bixiga, região
central de São Paulo.
Uma das vilas urbanas mais antigas de São
Paulo, a Vila Itororó foi cenário, nos últimos anos, de uma batalha
envolvendo prefeitura e governo do Estado de São Paulo, que queriam
transformá- la em centro cultural, e moradores, que lutavam para ter
seus direitos reconhecidos. Por fim, venceu o poder público, e às
famílias restou apenas sair do lugar onde viveram por tantos anos.
Luta antiga
A
disputa teve início em 2006, quando a vila foi desapropriada pelo
governo do Estado, por meio de um decreto de utilidade pública. Em
seguida, o Estado repassou o imóvel à Secretaria Municipal de Cultura,
que ficou responsável por elaborar um projeto de restauração para o
local. Alegando que seria inviável manter os moradores depois da
reforma, o poder público tomou as primeiras providências para tirá-los
da Vila.
Por meio de um acordo de cooperação entre município e
Estado, ficou acertado que a Secretaria Municipal de Habitação (Sehab)
seria responsável pelo atendimento provisório às famílias, e a Companhia
de Desenvolvimento Habitacional e Urbano (CDHU), por sua vez, pelo
atendimento definitivo – construção e financiamento de unidades
habitacionais.
Cerca de 80 famílias residiam na vila quando os
primeiros moradores foram retirados, no final de 2011. Com a repercussão
do caso, eles conseguiram algo raro em casos semelhantes: serem levados
para prédios próximos de onde viviam, no próprio bairro.
Remanescentes
No
entanto, ainda faltava atendimento para algumas famílias, que deveriam
ser levadas para o conjunto habitacional Bom Retiro C, também no centro,
cuja entrega deveria acontecer em abril deste ano. Em dezembro do ano
passado, os moradores foram surpreendidos com uma notificação de
despejo, programado para aquele mês.
Depois de mobilização das
famílias e de acordos com as secretarias envolvidas, conseguiram evitar o
despejo e permanecer em suas casas até a entrega dos imóveis da CDHU.
Em fevereiro deste ano, porém, a Justiça determinou a retirada das
famílias, mesmo sem solução habitacional.
Despejo
Eram
seis e meia da manhã de 20 de fevereiro quando os oficiais de Justiça
foram à Vila Itororó cumprir a reintegração de posse do imóvel. A ação
contou com forte aparato da Polícia Militar, que cercou todo o
quarteirão e impedia o acesso ao imóvel. Sob pressão da PM, os moradores
retiravam o que podiam de suas residências e levavam seus pertences
para a casa de parentes e amigos.
Segundo a Secretaria Municipal
de Habitação, seis das oito famílias cadastradas no órgão recebiam
auxílio-moradia no momento do despejo. A informação, porém, é contestada
pelos moradores. Há 31 anos na Vila Itororó, Antonia Candido conta que o
pagamento da primeira parcela da “bolsa-aluguel” no valor de R$ 300
mensais estava agendado para ocorrer em 28 de fevereiro – oito dias
depois do despejo. “Até lá ferem-se os direitos humanos, fere-se a
Constituição, fere-se o Estatuto da Criança, do Idoso; fere-se tudo”,
afirma.
Em 25 de fevereiro, ao procurar a Sehab, Antonia foi
informada de que o prazo para o pagamento da bolsa-aluguel havia sido
prorrogado para 7 de março. Segundo a Companhia de Desenvolvimento
habitacional e Urbano (CDHU), responsável pelas futuras moradias o
conjunto Bom Retiro C, para onde serão encaminhadas seis famílias, será
entregue em março. O órgão, no entanto, não especificou quando as
famílias receberão as chaves dos apartamentos.
Enquanto isso, os
antigos moradores da vila passam por dificuldades. A família de Antonia
mudou-se para um hotel, mas não sabe até quando poderá pagar pela
estadia. Seu neto mais velho, de três anos, perdeu a vaga na creche. “E a
vila lá, fechada”, lamenta.
O caso mais crítico é o de Maria
Helena Catarinhuque, 58 anos. Por morar há menos tempo na Vila Itororó,
ela não foi inserida no cadastro da Sehab para receber a bolsa-aluguel.
Com problemas de saúde e sem ter para onde ir, Maria Helena foi levada
na noite do despejo por voluntários para uma casa de acolhida na região
central. Desde então, ela tem pernoitado por diferentes albergues e
ainda aguarda uma solução definitiva.
Projeto elitista
Cerca
de 250 pessoas habitavam a Vila Itororó, a maior parte formada por
famílias de baixa renda. Para o advogado Caio Rioei Yamaguchi Ferreira,
do Escritório Modelo da PUC-SP, que prestava assessoria jurídica aos
moradores, a conduta do poder público só levou em conta o deslocamento
das famílias.
“O Estado só os removeu de lugar, mas não foi
prestar outro tipo de atendimento que dialogasse com as necessidades
dessas pessoas. É um projeto elitista e insensível à questão da
população de baixa renda”, diz.
“Pode ser até bom ter um centro
cultural lá, mas o direito adquirido à moradia deveria valer mais”,
afirma João Sette Whitaker, professor da Faculdade de Arquitetura e
Urbanismo da Universidade de São Paulo (USP).
Tramita na Justiça
um processo de usucapião urbano (direito que um cidadão adquire sobre um
imóvel em decorrência de seu uso por determinado tempo) em favor dos
moradores da Vila Itororó. De acordo com o Estatuto da Cidade, o
instrumento dá direito de posse aos moradores que permaneçam em uma área
por pelo menos cinco anos, utilizando-a para fins de moradia, sem
contestação do proprietário. A tendência, porém, é de que o processo
demore anos até ser concluído.
Higienização
A
destinação da vila para fins estritamente “culturais” sempre foi uma
das principais críticas ao projeto da Prefeitura. Um projeto alternativo
para a Vila foi proposto pelo Escritório Modelo da Faculdade de
Arquitetura e Urbanismo Mackenzie com o Grupo de Pesquisa em Habitação
Vida Associada. A ideia consistia em recuperar o patrimônio, mas previa a
permanência dos moradores no espaço. No entanto, o projeto nunca pode
ser apresentado à Secretaria Municipal de Cultura.
Para a
arquiteta Aline Fidalgo, que ajudou a elaborar o projeto alternativo, a
preferência pela opção de centro cultural não se justifica, na medida em
que a região é tradicionalmente marcada por um grande número de
atrações culturais.
“Para mim, soa como uma desculpa para esvaziar
mais o centro e viabilizar investimentos altamente lucrativos em uma
quadra hipervalorizada da cidade”, afirma Aline. E emenda: “Ninguém
ainda levou a público o que de fato, será o futuro da Vila Itororó”,
alerta.
Segundo a Secretaria Municipal de Cultura, o projeto de
restauração está pronto, mas ainda não há previsão de início das obras.
Ator e diretor da companhia teatral Impulso Coletivo, Jorge Peloso
argumenta que a própria vila sempre foi um pólo cultural. Em 2009, a
companhia lançou o espetáculo Cidade Submersa, baseado na
história das famílias. Para ele, a Vila depende dos seus moradores. “É
fato que ela [Vila] necessita de manutenção e reparos, mas a história da
Itororó é indissociável dos moradores que ali moraram por décadas”,
diz.
07 março 2013
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